“Ação
direta ensina a viver sem tutela”: o aspecto pedagógico da luta política na
imprensa anarquista e operária brasileira
Repudiamos [...] a ação eleitoral
e parlamentar, que só serve para reforçar o Estado [...] e adormecer as energias
populares. O nosso método é ação direta que [...] tende a despertar a iniciativa e
a coragem, leva a agir por conta própria, a unir-se, a viver sem tutela [...]
preconizamos (como meios de ação direta) a greve, a boicotagem, a sabotagem, a
agitação de praça, o comício, a greve geral, e por fim a insurreição e a
expropriação a que os oprimidos e explorados devem recorrer, se a isso levados
pela necessidade e pela consciência da sua própria força.
Ao enunciar sua
definição dos militantes engajados com o jornal A Plebe, Neno Vasco introduziu
uma imagem capaz de traduzir o aspecto essencialmente pedagógico do qual estava
profundamente impregnada a luta política levada a cabo pela imprensa anarquista
e operária, durante o contexto que abarca o período da Primeira República no
Brasil.Inscrevendo a ação direta no cerne da política,
Neno Vasco e seus companheiros de viagem apostavam na possibilidade de o
proletariado aprender, por si mesmo, a lutar em prol dos interesses da sua
classe social, construir a consciência dos antagonismos entre capital-trabalho,
superar a função do Estado e, por conseguinte, revolucionar a sociedade
capitalista, fato que tornaria exequível sua reconstrução ulterior em direção
ao socialismo.
Perscrutar esse aspecto
sublinhado por Neno Vasco constitui o objetivo maior do trabalho de João
Gabriel da Fonseca. Resultado de pesquisa e redação de monografia defendida
junto ao Curso de História do Instituto Federal de Goiás, o livro deste jovem
pesquisador lança um novo olhar sobre os aspectos “formais” e “informais” do
projeto político-pedagógico do jornal A Plebe, durante A Semana
Trágica de 1917 na cidade de São
Paulo, momento particularmente rico do
“sonhar libertário”, para evocar aqui a feliz expressão de Cristina Hebling
Campos.
Breve, porém, intensa
em termos de agitação social, A Semana Trágica assume na narrativa
tramada pelo autor mais que meros sete dias de existência. Privilegiando os
múltiplos fatores que a tornaram possível, João Gabriel da Fonseca coloca em
evidência a luta contra a carestia de vida, a diminuição da jornada diária para
08 horas, a regulamentação do trabalho infantil e feminino, as ressonâncias da
Revolução Russa, o assassinato do operário José Martinez, os saques ao Moinho
Santista, o emergir das Ligas Operárias de Bairro e o papel do Comitê de Defesa
Proletária.
No entanto, ela não se
reduz a isso. Distanciando-se das interpretações esquemáticas e simplistas, o
historiador recusa-se a ver n’A Semana Trágica um ato puramente
espontaneista dos trabalhadores por um lado, ou como a ação diretiva de uma
vanguarda política por outro. Pelo contrário, ela revelaria o processo de
enraizamento e duração da estratégia de ação direta, forma pela qual o
anarquismo exerceu sua hegemonia no interior do movimento operário brasileiro,
que se encontrava presente nas lutas contra o patronato desde a aurora do
século XX.
Das atividades nos
sindicatos até as intervenções nas escolas racionalistas, passando pela crítica
ao militarismo e a luta anticlerical, João Gabriel da Fonseca nos mostra o
papel não desprezível que A Plebe, surgida no entremeio d’ A Semana
Trágica, desempenhou enquanto centro de aglutinação e irradiação de
um projeto político-pedagógico que conferiu à ação direta a difícil tarefa de
ensinar os trabalhadores a viverem sem tutela.
Na sua luta pela
autonomia, esse projeto não se restringiu as formas tradicionais de educação
política, que visavam persuadir os trabalhadores racionalmente por meio da
propaganda doutrinária. Ao lado dessa forma de educação política, vemos surgir
nas páginas d’ A Plebe , uma outra, que integra, mas, ao mesmo tempo
,transcende a sua dimensão puramente racional; fato que não se furta à análise
extremamente cuidadosa de João Gabriel da Fonseca.
Em conjunto com os panfletos, ensaios,
informes e demais gêneros literários cuja fisionomia se aparenta, o autor
também se detêm nos gêneros literários que não podem ser tomados apenas como
formas de propaganda dirigida, tais como as caricaturas, poesias e crônicas.
Com objetivos semelhantes, porém com funções diferentes, esses gêneros
literários tinham como finalidade mais sensibilizar do que persuadir os
trabalhadores na sua luta contra o capital, mostrando que a autonomia é uma
conquista que passa tanto pelo intelecto quanto pelo coração.
Se analisada a partir
dessa perspectiva, o aspecto pedagógico da luta política enfatizado por Edgard
Leuenroth, Florentino de Carvalho, Adelino Pinho e os demais articulistas d’ A
Plebe ganha outro sentido, muito mais profundo e abrangente. Tal como é
entendido pelo autor, a luta política é, em si mesma, tomada como um processo
pedagógico. Não se tratou, obviamente, de um projeto que visava criar uma
escola aonde o militante “iluminado” viria, em um passe de mágica, fazer com
que os trabalhadores aprendessem o socialismo, mas, antes fazer com que as
organizações que lutavam pelo socialismo tivessem um caráter pedagógico.
O constante esforço dos
anarquistas para retirar os trabalhadores da apatia e incitá-los à ação, o qual
eles responderam de modo positivo e efetivo, talvez nos ajude a entender a
reação violenta dos poderes instituídos na semana de 09 a 16 de julho do ano de
1917. Afinal de contas, nada mais perigoso a uma República cujo cimento da
dominação estava assentado na dependência clientelista do que um movimento
operário que agia de modo totalmente autônomo. Em virtude disso, o governo de
São Paulo agiu de forma tão repressiva em relação aos movimentos grevistas que
eclodiram na cidade no referido ano, procurando a todo custo erradicar os
indesejáveis anarquistas, como se estes fossem plantas exóticas de impossível
aclimatação em um solo tido como ordeiro
e pacífico, imagem esta que foi constantemente reatualizada e ritualizada pelas
elites nacionais da época, quando tratou-se de deslegitimar toda a resistência por parte do jovem proletariado brasileiro contra o nascente
capitalismo industrial.
Quase um século nos separa dos personagens dessa história que nos é
contada pelo autor, o que pode gerar certo estranhamento no leitor que se
dispuser a enfrentar o presente livro. Em uma época em que se anuncia “ o fim
das utopias”, “ o desencantamento do mundo”, “ a ascensão da insignificância”,
“ a amargura da história”, entre outros lugares para designar o mundo dito “pós-moderno”, em que toda e
qualquer forma de tentativa de mudar a sociedade constitui uma quimera
irrealizável, o projeto político-pedagógico levado a cabo pelos anarquistas
antes, durante e depois d’ A Semana Trágica parece algo arcaico e
obsoleto.
Entretanto fica aqui o convite, em forma de desafio, para o leitor
refletir se o livro é ou não contemporâneo ao século XXI, século que parece
desconhecer a sábia lição extraída de Rosa Luxemburgo, também libertária, em
face das reiteradas e frequentes derrotas do movimento socialista no século XX,
bem como sua dimensão eminentemente pedagógica: “ Não estamos derrotados. Ao
contrário, venceremos, se não tivermos desaprendido a aprender”.
Thiago Lemos Silva
Aqueles que tiverem interesse em adquirir o livro, podem entrar em contato com o autor pelo e-mail:joaogabriel_fonseca@hotmai
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