quinta-feira, 23 de agosto de 2012

GUERRA CIVIL E AUTOGESTÃO: a revolução espanhola 1



                                                                                                                                  


A Guerra Civil Espanhola se iniciou em 1936 e se desenvolveu num contexto de pré- Segunda Guerra Mundial. Com isso, quase todos os elementos nela envolvidos também foram observados no conflito mundial. Houve uma luta contra o fascismo2, luta esta que tinha um caráter internacional, e é por isso que a Espanha acabou sendo o destino de muitos militantes antifascistas de todo o mundo, inclusive de brasileiros. Além desta luta antifascista, a Revolução Social também estava presente, como observa Hobsbawn:

[...] não foi por acaso que a política interna desse país notoriamente anômalo e auto-suficiente se tornou o símbolo de uma luta global na década de 30. Suscitou os principais problemas políticos da época: de um lado, democracia e revolução social, [...] do outro, um campo singularmente rígido de contrarevolução ou reação, inspirado por uma Igreja Católica que rejeitava tudo o que acontecera no mundo desde Martinho Lutero. (HOBSBAWN, 1995, p.158)

Assim, como escreveu Gaétano Manfrédonia:

A guerra da Espanha não poderia, em nenhum caso, ser apreendida como uma luta a favor ou contra o fascismo, senão como a última tentativa para o proletariado revolucionário de opor-se à reação, realizando a revolução social. (MANFRÉDONIA, 2002, p.27)

As origens da Revolução Espanhola estão intimamente ligadas às origens do anarquismo espanhol, que data das influências de Proudhon e Bakunin, no século XIX, e foi aumentada com os embates entre Bakunin e Marx no seio da Primeira Internacional. No Congresso da Basiléia, por exemplo, em 1869, havia dois delegados espanhóis que tomaram o partido de Bakunin. A partir da década de 1880, os escritos de Kropotkin também começaram a chegar à Espanha e contribuíram muito para o desenvolvimento dos ideais libertários neste país. A influência de Kropotkin se fez sentir principalmente nas zonas rurais, enquanto a de Bakunin foi sentida nas áreas urbanas.
Outro fator que contribuiu para a Revolução Espanhola e para o predomínio das idéias libertárias foi a fundação de uma central sindical de orientação anarcossindicalista, a Confederação Nacional do Trabalho – CNT –, criada em outubro de 1910. Quando se iniciou a Revolução a CNT tinha uma extraordinária influência sobre o movimento operário, principalmente na região da Catalunha, e em especial em Barcelona, como sugere Pierre Vilar ao dizer que: [...] ela [a CNT] pode, com uma ordem, paralisar Barcelona. E toda mobilização política nessa cidade (como em outubro de 19343), organizada sem ela ou contra ela, caminha para o fracasso. (VILAR, 1989, p.15)
A CNT adquiriu uma importância singular no processo revolucionário, desempenhando, porém, um papel dúbio: ao mesmo tempo em que ela impulsionava os processos de coletivização, ela também ajudou a freá-los na medida em que a guerra se tornava mais importante do que a própria Revolução. Como disse Daniel Guérin:

[...] à medida que o Estado se reforçava e o caráter totalitário da guerra se agravava, a contradição entre uma república burguesa beligerante e uma experiência de comunismo ou, mais genèricamente, de coletivismo libertário, tornava-se mais acentuada. Finalmente, a autogestão teve que bater em retirada, sacrificada no altar do “antifascismo”. (GUÉRIN, 1968, p.138-39)

A Revolução foi catalisada pela tentativa de golpe fascista, como observou muito bem Pierre Broué ao dizer que “A iniciativa da contra-revolução desencadeou a Revolução”  (BROUÉ, 1992, p. 77). Talvez, sem a tentativa de golpe, a Revolução não tivesse ocorrido, ou demorasse um tempo maior para eclodir.
Nessa luta pelo controle direto dos meios de produção pelos produtores é que Diego Abad de Santillán escreveu seus estudos econômicos sobre as possibilidades reais de gestão direta da economia espanhola nos moldes de uma sociedade libertária. Muitas de suas propostas, que consistem basicamente em um esquema de federações começando desde as organizações comarcais e indo até organizações nacionais, foram aprovadas no IV congresso da CNT realizado de 1 a 10 de maio de 1936 sendo que, posteriormente, muitos de seus estudos e propostas acabaram sendo implementados durante a Revolução.
Os processos de coletivização4 na Espanha assumiram uma forma diferente, por exemplo, dos da Revolução Russa. Na Espanha deu-se a chamada “coletivização pela base”, onde os produtores diretos assumem a gestão dos meios de produção. George Orwell descreveu assim a cidade de Barcelona, que era o epicentro da Revolução urbana, quando por lá ele passou, no início da Guerra Civil:

[...] para quem acabava de chegar directamente de Inglaterra o aspecto de Barcelona constituía algo de surpreendente e avassalador. Era a primeira vez que me encontrava numa cidade em que a classe trabalhadora estava no poder. Praticamente todos os edifícios de tamanho apreciável tinham sido tomados pelos trabalhadores e estavam envoltos em bandeiras vermelhas ou ostentavam a bandeira encarnada e negra dos anarquistas; em todas as paredes se viam pintadas a foice e o martelo e as iniciais dos partidos revolucionários; quase todas as igrejas tinham sido esventradas e as suas imagens queimadas. Aqui e ali, brigadas de trabalhadores demoliam sistematicamente igrejas. Não se topava loja nem café que não tivesse uma inscrição dizendo que fora coletivizado – até os engraxadores estavam colectivizados e tinham as suas caixas pintadas de encarnado e preto.(ORWELL, p.8-9)

Os processos de autogestão se que espalharam pela Espanha chegou a tomar conta de aproximadamente 80% do país, segundo Maurício Tragtenberg em seu livro Reflexões Sobre o Socialismo. Porém, os processos de autogestão sofreram um refluxo, tanto pela falta de matériasprimas para a indústria e para as chamadas colectividades rurais5 – com uma grande sabotagem efetuada pelo governo republicano – quanto por derrotas políticas dentro da Espanha e pela política adotada pela URSS em relação à Espanha. A falta de matérias-primas, aliada a uma “má vontade” do governo republicano em ajudar à autogestão e ao intervencionismo estrangeiro, notadamente soviético, dentro do campo “republicano”, causou a decadência dos anarquistas e dos comunistas dissidentes do regime de Moscou, além da ascensão dos comunistas stalinistas. É o que James Joll sugere:

[...] Foi o problema do equipamento e de matérias-primas que, mais do que qualquer outra coisa levou ao declínio os anarquistas. A revolucionária idéia de uma milícia anarquista, abastecida por fábricas anarquistas, inevitavelmente sucumbiu perante a carência geral de matérias básicas; e foi, sem dúvida, o fato de, durante a guerra civil, o governo apenas ter conseguido obter fornecimento da União Soviética que mais largamente contribuiu para a crescente influência dos comunistas e para o eclipse e a supressão dos seus rivais. (JOLL, 1977, p.309)

Assim, tanto o predomínio político dos anarquistas quanto os processos de autogestão entraram em declínio, em favor das ideias do comunismo advindo de Moscou. Pode-se colocar como o símbolo dessa decadência os combates de maio de 1937 na cidade de Barcelona, onde anarquistas e militantes do POUM6 enfrentaram os comunistas com armas pelo controle da central telefônica da cidade, que desde o início da Revolução fora coletivizada e estava nas mãos dos anarquistas, e os comunistas, através do governo, tentaram reavê-la a força. Essa oposição entre anarquistas e comunistas era assunto em jornais e revistas libertárias da época, como por exemplo, na revista Mujeres Libres, que em seu 7° número diz:

Há três meses, o PSUC7, de acordo com o Partido Comunista Espanhol, lança duas palavras de ordem com uma surpreendente insistência. A primeira, “Ganhar a Guerra”; a segunda “lutamos por uma República democrática”, pois bem sabem os camaradas do PSUC que, com efeito, uma vez terminada a guerra, teriam de lutar por esta República democrática, porque há um milhão de homens na Catalunha e outro milhão no resto da Espanha, que não admitiriam esta República democrática. (Mujeres Libres nº 7 in RAGO; BIAJOLI, 2007, p.57)

O que estava em disputa, porém, não eram apenas as ideologias antagônicas, e sim a expansão ou o refluxo dos processos autogestionários, pois o PC – que era de orientação stalinista – era contrário à autogestão, preferindo o modelo burocrático da URSS. Na prática, o PCE8 estava contra a Revolução, pois esta estava ficando fora do controle da URSS e por causa das relações externas desta, que procurava uma aliança com os países ocidentais para poder enfrentar Hitler – mais tarde acabou saindo um acordo com o próprio Hitler. Assim, eles colaboraram com os interesses dos países ocidentais em detrimento da Revolução e, principalmente, da autogestão, como observou Orwell:

[...] Na realidade, foram os comunistas, mais do que quaisquer outros, que impediram a revolução em Espanha. Mais tarde, quando as forças direitistas obtiveram o controlo absoluto, os comunistas mostraram-se dispostos a ir muito mais longe do que os liberais na perseguição dos líderes revolucionários. (ORWELL, p.71-72)

Esta pesquisa visa mostrar como se desenvolveram os processos de autogestão e como eles se deram na prática, além de apreender os fatores de sua derrota. Além disso, ela busca mostrar a atuação da maior central sindical anarquista de todos os tempos, a Confederação Nacional do Trabalho – CNT –, mostrando suas práticas e suas contradições no processo revolucionário espanhol, verificando o impacto de suas atitudes na expansão e na retração da autogestão. A pesquisa também procura entender como os comunistas seguidores de Stálin contribuíram para a derrota da autogestão de forma deliberada e consciente, e que agiam de forma a defender os interesses soviéticos dentro da Espanha e fora dela. Assim, analisando o caso espanhol, podemos ver como se dava a política da Terceira Internacional no âmbito externo à URSS, cujos princípios eram baseados na defesa do regime de Moscou a qualquercusto.
Para o desenvolvimento da pesquisa são utilizados como fontes alguns jornais publicados na Espanha durante os acontecimentos, como o Tierra y Libertad, Solidaridad Obrera, os Boletín de Información de la CNT-FAI e uma seleção de documentos do grupo feminista Mujeres Libres realizados por Margareth Rago e Maria Clara Pivato Biajoli, cuja publicação recebeu o nome de Mujeres Libres da Espanha: Documentos da Revolução Espanhola. Tais jornais são essenciais para a compreensão dos processos de autogestão nas empresas, pois eles estavam entre os promotores ideológicos da autogestão. No entanto, é preciso ser cauteloso ao analisá-los, pois eles estão carregados de ideologia e de “presenteísmo”. Além dos jornais existem também algumas obras essenciais para se analisar a autogestão, tanto teoricamente quanto na prática, como o já citado livro escrito por Diego Abad de Santillán poucos meses antes do início da Guerra Civil e da Revolução, intitulado O Organismo Econômico da Revolução, cuja intenção era dar bases teóricas a uma possível economia autogerida, e que foi em grande parte usado como modelo para a autogestão que se desenvolveu após julho de 1939.
Além destas obras, existem autores que, de uma forma ou de outra, produziram estudos e/ou relatos sobre o conflito espanhol sobre a autogestão em empresas ou mesmo não campo de batalha. Também existem estudos, como o de Carlos José Márquez, em Como se há Escrito la Guerra Civil Española, que são essenciais para uma discussão sobre a historiografia e sobre as memórias produzidas sobre a Guerra Civil, ainda mais quando muitos mitos foram e ainda são criados em torno do conflito, seja pela direita, seja pela esquerda. Outros autores importantes são os que de alguma forma participaram dos acontecimentos ou estiveram envolvidos no conflito, como José Peirats, Daniel Guérin, George Orwell, Frank Mintz, entre outros.
Conclusivamente, a pesquisa tem caminhado no sentido de demonstrar as contradições do próprio movimento libertário, e que nem sempre andava junto com os processos de autogestão. Além disso, divisões internas relacionadas às ideologias – pois não eram apenas os anarquistas que impulsionaram a autogestão – e a própria prática autogestionária deram o tom das disputas no campo “republicano”. Na verdade, o que estava se desenvolvendo era uma luta entre autogestão e heterogestão. Também, é preciso ter em conta a influência que o conflito militar acabou exercendo sobre os processos autogestionários. Inicialmente a luta foi levada a cabo pelas milícias, e aos poucos estas foram sendo substituídas por unidades militares convencionais, com comandos e estrutura militarizados e centralizados. Isso significava a introdução da heterogestão na luta militar contra os franquistas. Ao mesmo tempo, as milícias possuíam poucas armas e estas eram fornecidas, principalmente, pela URSS. No entanto, estas forneciam armas sob certas condições, e elas acabavam indo parar nas mãos do que Carlos José Márquez chamou de “Partido da Ordem”, ou seja, no grupo político que lutava pela manutenção da ordem republicana, ou seja, pelo PCE e seus aliados republicanos. Este “Partido da Ordem” priorizava a luta antifascista – ou seja, o conflito militar – sobre o processo revolucionário. Seu lema era: “Primeiro ganhar a guerra, depois fazer a revolução”. Dessa maneira, podemos observar como os processos autogestionários não estavam separados das disputas político-ideológicas que ocorria dentro do campo republicano e, ao contrário, as modificações políticas que ocorriam no capo “republicano”, de uma forma ou de outra, acabava por incidir na própria prática autogestionária ou na sua expansão ou retração.

Igor Pomini Pasquini  é graduado em História pela UNESP; mestrando em História pela UFU e membro do Coletivo Mundo Ácrata.

Notas:
1 Artigo originalmente publicado nos "Anais do VII Simpósio Nacional Estado e Poder" (Uberlândia, UFU, 20 a 22 de agosto de 2012)
2 O termo fascismo é questionável ao se aplicar aos militares espanhóis, mas aqui ele é usado porque o autor no qual está referindo o utiliza.
3 Em outubro de 1934 houve levantes em várias partes da Espanha, obrigando o governo a decretar estado de sítio. Os militantes da CNT participaram ativamente desses levantes, juntamente com os comunistas, socialistas e outros.
4 A autogestão era geralmente chamada de coletivização, numa tentativa de se diferenciar da nacionalização.
5Estas colectividades, como ficaram conhecidas, eram organizações camponesas que funcionavam como unidades de produção independentes, ao estilo de uma Comuna.
6 Partido Operário de Unificação Marxista. Era um partido cujo propósito era reunir todos os comunistas dissidentes do regime de Moscou. Muitas vezes o POUM é erroneamente classificado como trotskista, pois seus fundadores, Andres Nin e Joaquin Maurín, eram ex-trotskistas.
7 Partido Socialista Unificado da Catalunha. Era um partido catalão alinhado a Moscou e a principal alavanca stalinista na Catalunha.
8 Partido Comunista da Espanha. Era o partido comunista oficial, stalinista e filiado à III Internacional.


Referências Bibliográficas
BROUÉ, Pierre. A Revolução Espanhola 1931-1939. São Paulo: Perspectiva, 1992.
GUÉRIN, Daniel. O Anarquismo: da Doutrina a Ação. Rio de Janeiro: Germinal, 1968.
HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: O Breve Século XX (1914-1991). São Paulo: Cia das Letras, 1995.
JOLL, James. Anarquistas e Anarquismo. Lisboa: Dom Quixote, 1977.
LEVAL, Gaston; BERTHIER, René; MINTZ, Frank. Autogestão e Anarquismo. São Paulo: Imaginário, 2002.
MÁRQUEZ, Carlos José. Como se ha Escrito la Guerra Civil Española. Madrid: Ediciones Lengua de Trapo, 2006.
MANFRÉDONIA, Gaétano at al. Espanha Libertária: A Revolução Social Contra o Fascismo. São Paulo: Imaginário, 2002.
ORWELL, George. Homenagem à Catalunha. Lisboa: Livros do Brasil.
RAGO, Margareth; BIAJOLI, Maria Clara Pivato. Mujeres Libres da Espanha: Documentos da Revolução Espanhola. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.
SANTILLÁN, Diego Abad de. Organismo Econômico da Revolução: A Autogestão na Revolução Espanhola. São Paulo: Brasiliense, 1980.
TRAGTENBERG, Maurício. Reflexões Sobre o Socialismo. São Paulo: Editora Moderna, 1986.
VILAR, Pierre. A Guerra da Espanha. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
WOODCOCK, George. História das Idéias e Movimentos Anarquistas (2vol.). Porto
Alegre: L&pm, 2002.

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